O Brasil é o país mais biodiverso do planeta, com seis biomas terrestres, três ecossistemas marinhos e pelo menos 103.870 espécies de animais, incluindo o mico-leão-dourado, a raposa comedora de caranguejos e a anta.
Mas os amantes da natureza não são os únicos interessados na diversidade da vida silvestre do país: os caçadores esportivos também percorrem as florestas e, embora nem todas as suas capturas sejam legais, muitos não têm escrúpulos em publicá-las no YouTube e no Facebook.
Um novo estudo publicado na Conservation Biology é um dos primeiros a fornecer dados sistemáticos sobre a caça esportiva ilegal no Brasil usando dados do Facebook. Durante dois anos, os pesquisadores analisaram 2046 publicações de cinco grupos. A partir delas, eles identificaram 4658 animais caçados ilegalmente, representando 157 espécies nativas. Dezenove delas estão em perigo de extinção. O estudo também detectou a caça ilegal em todos os 27 estados brasileiros e em seis biomas naturais.
O autor principal, Hani Rocha El Bizri, conversou com a Forests News sobre as descobertas do estudo e sua importância para a promoção do manejo sustentável da vida silvestre no Brasil. El Bizri coordena a futura Plataforma de Parceria Transformativa (TPP) sobre o uso sustentável da vida silvestre, liderada pelo Centro de Pesquisa Florestal Internacional e o Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal (CIFOR-ICRAF).
P: O que torna esse estudo pioneiro no Brasil?
R: É a primeira vez que pesquisadores usam a mídia social para investigar a caça esportiva ilegal. A questão recebeu muita atenção da mídia no Brasil no passado, inclusive da CNN e da BBC, mas as evidências citadas eram anedóticas, não havia coleta de dados padronizada.
A coleta desses dados é difícil porque no Brasil é ilegal caçar qualquer animal que não seja o javali europeu invasor (Sus scrofa). Os caçadores podem ter medo de serem processados e não serem sinceros sobre a caça de espécies nativas.
Portanto, não sabíamos muito sobre a cobertura geográfica da caça esportiva ilegal – ela era nacional ou localizada? Graças à nossa análise, agora sabemos que ela ocorre em quase todos os lugares: em todos os biomas e em todos os estados brasileiros. Nossas estimativas se baseiam no monitoramento de cinco grupos de caça esportiva no Facebook, por meio dos quais vinculamos postagens de caça ilegal a 14,2% dos municípios brasileiros (ou 790 no total). Há muito mais e, provavelmente, muitos caçadores que não publicam suas capturas, portanto, é provável que a disseminação da caça ilegal esteja subestimada.
Nossas descobertas indicam que, no Brasil, proibir essas atividades e contar apenas com as estruturas de monitoramento existentes para impor a conformidade não é muito eficaz.
P: Você destacou que a caça esportiva ilegal tem atraído muita atenção da mídia. O que despertou o interesse das pessoas?
R: A maioria dos grupos de mídia social sobre caça esportiva foi criada em 2018, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro venceu as eleições nacionais e as pessoas pareciam ter menos medo de serem processadas devido ao desmantelamento das instituições ambientais e à retórica e às ações antiambientais do presidente. O governo também emitiu uma série de decretos que facilitavam a compra de armas de fogo por colecionadores, atiradores esportivos e caçadores. Um dos objetivos dessa flexibilidade regulatória era reduzir a população invasora de javalis, mas as pessoas notaram que fotos de espécies nativas também estavam aparecendo em grupos de caça nas mídias sociais e no YouTube. Evidências anedóticas pareciam mostrar que pelo menos alguns desses caçadores registrados também estavam usando suas armas para caçar espécies nativas.
P: Por que vocês escolheram o Facebook para coletar dados?
R: Já havíamos publicado um artigo sobre o YouTube e a caça esportiva em 2015. Desde então, me deparei com alguns vídeos de caça esportiva ilegal e queria entender como a mídia social poderia estar influenciando essa prática. Durante o governo Bolsonaro, as pessoas começaram a ver ainda mais vídeos de caça esportiva ilegal no YouTube, e queríamos ver se o mesmo tipo de situação estava acontecendo no Facebook.
Também descobrimos que o Facebook tinha algumas vantagens sobre o YouTube porque é mais voltado para a comunidade e fornece informações mais completas. No Facebook, é mais fácil formar comunidades em que várias pessoas compartilham suas fotos e vídeos de caça, enquanto os canais do YouTube geralmente pertencem a uma única pessoa.
O uso do Facebook também nos permitiu ver a localização dos usuários em nível municipal, o que é impossível no YouTube. Na melhor das hipóteses, os vídeos do YouTube nos permitiram deduzir o bioma em que a caça estava sendo realizada, mas não era tão preciso.
P: Quais foram alguns dos desafios que você enfrentou?
R: A identificação de espécies a partir de fotografias pode ser muito difícil, especialmente quando o animal já foi morto e esquartejado. Quando iniciei essa pesquisa e comecei a trabalhar com as cientistas do CIFOR-ICRAF Lauren Coad e Julia Fa, eu não estava vinculado a nenhum projeto global, mas conseguimos financiamento por meio do TRADE Hub [do Centro de Monitoramento da Conservação Mundial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente]. Isso nos permitiu contratar três pessoas capazes de identificar aves e répteis, que eram os mais difíceis. As aves representam uma grande proporção dos animais caçados.
P: Qual é o rumo da pesquisa a partir de agora?
R: Estamos trabalhando em outro artigo que analisa as implicações sociopolíticas da flexibilização dos regulamentos sobre armas de fogo na caça de espécies nativas no Brasil. É importante investigar se o aumento do acesso às armas de fogo influenciou a caça esportiva ilegal de espécies nativas no Brasil – especialmente, como eu disse, considerando que esses grupos foram criados em 2018, quando Bolsonaro venceu a eleição.
P: Que impacto você espera que esse trabalho tenha?
R: Acredito que esta pesquisa abre caminho para uma melhor compreensão do que está acontecendo com nossa vida silvestre nativa e pode informar estratégias personalizadas que abordem especificamente a caça esportiva. É claro que isso exigirá mais pesquisas e trabalho político para saber qual é o melhor caminho a seguir.
Uma das possibilidades mais controversas seria regulamentar e criar programas sustentáveis de caça esportiva que envolvam a população local, como tem se mostrado eficaz em outros países, como África do Sul, Zimbábue e Namíbia, e mais localmente no Uruguai. Isso deve ser amplamente debatido, pois nossas descobertas mostram que as regulamentações atuais não estão funcionando para evitar a caça de espécies nativas. De alguma forma, precisamos encontrar alternativas.
Agradecimentos
Este projeto foi financiado pela Fundação Gordon e Betty Moore por meio da concessão GBMF9258 para a Comunidade para o Manejo da Vida Selvagem na Amazônia e na América Latina (COMFAUNA) e pelo projeto Trade, Development and the Environment Hub (ES/S008160/1) do Fundo de Pesquisa e Inovação Global do Reino Unido (UKRI GCRF).
Somos gratos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) pela bolsa de pesquisa PNPD concedida a M.A.O. (88887.717863/2022-00). J.A.B. é apoiado por uma bolsa de pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (150261/2023-3). D.J.I. é grato pelo apoio da UK Research and Innovation (bolsa Future Leaders Fellowship MR/W006316/1). J.E.F. e L.C. foram financiados pela USAID como parte da Iniciativa de Pesquisa sobre Carne de Animais Silvestres do CIFOR-ICRAF.
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